Tema 286 – A relação entre médicos e pessoas com NF

“Tenho ido a muitos médicos e nenhum deles tocou a mão em mim. Andei de um médico para outro durante anos sem saber qual é a minha doença. Quando um deles falou que era NF1, mostrou umas figuras terríveis no computador. Eu fiquei chocada. Por que os médicos são tão indiferentes ao nosso sofrimento? ” APA, de Goiânia, GO.

Cara APA, obrigado pelo seu relato que, lamentavelmente, não é raro entre as pessoas que possuem NF.

Para responder a você, vou recorrer a um livro que acabei de ler, um dos melhores livros que já li sobre medicina, escrito pelo Ricardo de Menezes Macedo, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. O livro chama-se “Renúncia à arte – ensaio sobre a razão utilitária da medicina contemporânea” e foi publicado pela editora Escrituras Médicas, de São Paulo, em 2014 (veja o livro AQUI).

Em seu livro, o Dr. Ricardo nos apresenta algumas condições sociais, econômicas e científicas que afetam profundamente a prática da medicina, com grandes efeitos sobre a relação entre os médicos e as pessoas doentes. Não é possível resumir um livro tão profundo e extenso sobre a medicina atual, mas destacarei algumas poucas ideias que nos ajudam a entender o distanciamento entre os médicos e as pessoas atendidas por eles.

Ricardo defende que a medicina deveria ser baseada em três princípios: a prioridade do cuidado do paciente, a autonomia do paciente e a justiça social. No entanto, ele nos mostra que estes princípios não são respeitados diante das forças enormes do mercado de trabalho dos médicos, que é controlado pelas empresas de serviços de saúde, de equipamentos médicos e de medicamentos, que transformam a saúde num produto a ser comercializado.

O livro mostra que a insatisfação crescente com a medicina que vivemos atualmente, tanto por parte dos médicos quanto pelos pacientes, seria resultado da maneira como desenvolvemos a nossa civilização, na qual somos obrigados a trocar a liberdade pela necessidade de segurança, somos levados ao consumismo e ao individualismo.

Ricardo relembra as ideias de vários pensadores e filósofos que analisaram as relações da medicina com as estruturas de poder, mostrando como o discurso da medicina, com sua lógica, seus valores e o controle dos corpos e da vida, fazem parte da organização da sociedade para a produção de mercadorias e acumulação de riqueza no capitalismo.

Assim, de um lado o médico precisa dar prioridade ao paciente, mas de outro a estrutura social o obriga a extrair lucro da doença, a consumir produtos para a manutenção da saúde ou, por exemplo, a promover tecnologias para combater o envelhecimento. Este conflito entre o desejo de ajudar e a necessidade de ser produtivo para o sistema econômico desgasta o médico e ameaça a saúde das pessoas.

Pressionado para ser capaz de dominar as tecnologias modernas cada vez mais abundantes, o médico reduz seu campo de interesse aos aspectos técnicos da medicina e não percebe as relações das doenças de seus pacientes com as condições sociais em que vivem. Assim, o médico afasta-se da solidariedade, que deveria ser o princípio fundamental na relação do médico com o sofrimento de uma pessoa que o procura, e se distancia dos pacientes no mundo frio da técnica e dos exames.

Enfim, o livro do Ricardo é uma leitura fundamental para todos os médicos e médicas porque nos faz entender que atualmente a relação entre médico e paciente é uma relação sem sujeito, ou seja, dominada por interesses externos e acelerada no tempo pela necessidade de produtividade econômica. A rapidez do atendimento então se transforma em rispidez, em maus tratos, em indiferença e solidão para todos.

O médico, na sociedade em que vivemos, não toca as pessoas e não é tocado por elas.

Precisamos mudar esta realidade.

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