Denúncia de Facebook
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Eliane Brum
26, de Setembro de 2016
Ao apresentar a denúncia contra Luiz Inácio Lula da Silva , o procurador da República
Deltan Dallagnol apanhou de (quase) todos os lados, algo bastante raro nestes
tempos. Tão raro que merece algum espanto e um tanto de precaução. Em
diferentes partes do seu discurso durante a coletiva de imprensa de 14 de setembro , ele
chamou Lula de ?comandante máximo? do que definiu como ?propinocracia?, de ?o
grande general? do esquema de corrupção e de ?maestro da orquestra
criminosa?.Disparou metáforas e abusou dos adjetivos Mas quando
efetivamente fez a denúncia, a força-tarefa daLava Jato , em Curitiba, acusou Lula pelos crimes de
corrupção e de lavagem de dinheiro. O que não é pouco, mas é bem diferente de
ser o chefe de uma organização criminosa. O episódio é pródigo de sentidos
sobre o Brasil atual. Um deles é a corrosão da linguagem. O outro é a demanda
por crença. Estas duas dimensões se articulam na gênese do atual momento do
país.
O procurador Deltan Dallagnol não parecia estar num tribunal de júri,
como chegou a ser sugerido em algumas críticas sobre sua atuação, mas em
outra arena, a das redes sociais. Ele não parecia preocupado em informar
cidadãos, mas em buscar seguidores. Como um candidato a herói nesta época,seu troféu são cliques no botão de ?curtir?
O representante do Ministério Público Federal acusou sem exibir
provas, apresentou como verdade o que não era capaz de provar como verdade.
Ao descolar-se da realidade, esvaziou as palavras, o que deveria ser denúncia
virou grito. Como no cotidiano das redes sociais, repete-se e repete-se algo
para que, pela viralização, ganhe status de verdade.
De imediato, veio a reação. O gráfico do powerpoint em que Dallagnol
tentava mostrar como tudo convergia para Lula virou meme. E o que viralizou
foi uma frase atribuída ao procurador: ?Não temos provas, mas temos
convicção?.
Esta é a parte mais interessante dessa produção de conteúdo viral. A
frase não foi dita. Ela era também uma criação. Ainda que seja possível
interpretar o conjunto da apresentação do procurador desta maneira, há enorme
diferença entre uma afirmação literal, entre aspas, e a interpretação ou
conclusão a que um outro possa chegar a partir do que foi dito. Se essa
distinção não é estabelecida, perde-se o sujeito e perde-se o discurso.
Naquele momento, a disputa se dava numa guerra de verdades fabricadas.
Nas redes, a viralização ou a multiplicação dos compartilhamentos é a melhor
estratégia para conferir veracidade a algo ou mesmo transformar versão em
fato. Ou ainda, é uma forma de criar realidade.
Não estou aqui dizendo que realidade, verdade e fato são a mesma
coisa. O que estou sugerindo como hipótese é que a convocação ? ou invocação
? é a mesma tanto na ação ? a denúncia verbal dos procuradores diante das
câmeras de TV ? quanto na reação a ela nas redes. Não se pede pensamento, mas
adesão pela fé. A verdade torna-se uma questão de crença ? e a realidade se
afirma pela quantidade de crentes que a ela aderem. A experiência cognitiva é
substituída pelo botão de ?curtir?. Em vez da reflexão, o espasmo.
De um lado e de outro, o que aparece como mais importante é a
convicção, não as provas. E uma convicção formada a partir da quantidade de
cliques. Esse desejo feroz de crença tem corroído o país de
forma insidiosa. E só persiste porque os fatos, para um e outro lado, são
inconvenientes. O problema é que mesmo a história recente já mostrou que
tentar contornar os fatos, por mais duros que sejam, resulta em fatos ainda
piores.
No caso específico da denúncia de Lula, tanto a ação quanto a reação
buscavam adesão pela crença. Os fatos importavam pouco. É necessário, porém,
fazer uma distinção de responsabilidades. Deltan Dallagnol falava como
procurador da República. Servidor público no exercício de suas funções
constitucionais. Quando ele acusa sem apresentar provas, a gravidade é de
outra ordem. Pela posição que ocupa, sua palavra tem mais potencial para ser
decodificada como verdade. Ao falar como procurador, ele não representa a si
mesmo, mas a instituição.
Essa dinâmica assumida pela figura que representa a força-tarefa da
Operação Lava Jato em Curitiba chama atenção para a ?justiça? que ganha
rosto, e que ganha rosto na era da internet. Numa analogia com as redes, ao
fazer acusações gravíssimas sem lastro nas provas, Dallagnol faz um ?discurso
de ódio?. Neste sentido, o procurador não é muito diferente de um dos
?haters? (odiadores) da internet, ao chamar Lula de ?maestro da orquestra
criminosa? sem mostrar o que sustenta essa acusação.
Torna-se preciso então olhar para o indivíduo Deltan Dallagnol, este
que personifica o que não deveria ser personificado. Num ótimo texto publicado no jornal Valor , a
jornalista Maria Cristina Fernandes conta sobre pessoalidades que ajudam a
iluminar algumas escolhas do procurador. Uma delas é a sua admiração por um vídeo da plataforma TED em que o músico Derek Sivers
ensina, em três minutos, ?como iniciar um movimento?.
Na tela, há um jovem sem camisa que dança freneticamente numa
montanha. Em seguida, outra pessoa junta-se a ele, tornando-se o ?primeiro
seguidor?. Logo, todos o imitam. Um líder, segundo Sivers, precisa ter a
coragem de arriscar-se a ser ridicularizado. Quando ele recebe adesão em
número razoável, a situação se inverte e quem passa a se sentir ridículo é
aquele que não adere. O mais importante: ?É o seguidor que transforma o
solitário em um líder?. Como autor de um vídeo com quase 6 milhões de
visualizações, Sivers certamente sabe o que diz.
Deltan Dallagnol incorporou este vídeo em suas palestras sobre as 10
medidas anticorrupção. Exibiu-o em fevereiro deste ano ao falar no evento
?The Global Leadership Summit?, na Primeira Igreja Batista de Curitiba. O procurador disse então à plateia : ?Tenha a coragem
para saber ser liderado. Para se levantar e, quando você vê uma causa boa, se
juntar ao maluco solitário que está dançando?.
E, alguns minutos mais tarde: ?Lute pelas causas que você ama como
você lutaria por um filho com câncer. Eu duvido que você desistisse de um
filho doente com câncer por mais que inúmeros médicos buscassem tirar suas
esperanças. Você continuaria lutando, você dobraria os joelhos, você buscaria
o impossível, porque você ama aquele filho. Assim como você lutaria por esse
filho, meu desafio hoje para você é que você lute pelo teu país?.
Em sua pregação anticorrupção, Dallagnol invoca do púlpito a
oportunidade de mudar o país. E faz a comparação: ?Talvez você tenha ido pro
Paraguai ou pra Miami e tenha lá pensado o seguinte: eu não gastaria isso que
estou gastando, mas aqui é tudo mais barato e vou aproveitar porque é uma
oportunidade?. Pede então à plateia para ?curtirem? sua página pública, ?em
nome de Deltan Dallagnol?, no Facebook: ?Eu não sabia, porque eu era
ignorante em Facebook. Mas, quando você curte uma página você passa a ser
alimentado pelo que é postado lá?. E encerra com uma pergunta: ?Nós podemos
contar com você??. Pede então que aqueles que apoiam ?as 10 medidas? levantem
as mãos. Registra a imagem em seu celular. ?Um dois três... sensacional?.
Deltan Dallagnol é um homem que se investe de uma missão e se
apresenta no Twitter como ?seguidor de Jesus?. As aparições públicas do
procurador demonstram que ele pede adesão pela fé no líder ? ou no ?maluco
solitário? que, pela adesão , torna-se líder. Como se viu na apresentação da
denúncia contra Lula, em 14 de setembro, ele também parece seguir à risca o
ensinamento do guru Derek Sivers de não temer o ridículo.
É neste ponto que vale observar os últimos dias com atenção redobrada.
A cobertura da denúncia foi um daqueles momentos em que uma parcela da
imprensa fez o seu papel, ao lançar luz sobre pelo menos dois pontos
importantes do espetáculo estrelado por Deltan Dallagnol: 1) a diferença
entre a acusação verbal, a de chefe de uma organização criminosa, e a
denúncia formal, a de corrupção e lavagem de dinheiro; 2) a escassez de
provas para sustentar a denúncia. Uma parte da imprensa também fez seu papel
ao mostrar que a frase atribuída ao procurador ? ?Não temos provas, mas temos
convicção? ? não foi dita por ele.
Mas será que era a esta parcela da população, a que se informa por
determinados jornais, que Dallagnol se dirigia ao fazer sua frenética dança
na montanha? A apresentação da força-tarefa da Lava Jato foi transmitida por
algumas TVs. O vídeo está no YouTube. Quantos milhões não viram apenas isso?
O que vira ?verdade? nas redes? O que permanece como ?fato?? Qual é a
?realidade? que efetivamente se impõe?
É razoável supor que Deltan Dallagnol sabia o que fazia ao optar por
uma acusação midiática diferente da denúncia formal. Quantos assistiram e
assistirão a trechos em vídeo da fala espetaculosa e quantos lerão as 149
páginas da denúncia formal ou as críticas mais densas a ela? É na convicção
de seus seguidores ? e não nas provas ? que Dallagnol parece apostar.
É bastante difundida a hipótese de que a fragilidade da denúncia deva
ser comemorada pela defesa de Lula. No julgamento, sim. Mas e no
justiçamento? Onde se ganha a fé das pessoas, a fé que vira voto, já que é
também crença ? e não razão ? que hoje se pede aos eleitores? O impeachment de Dilma Rousseff , claramente sem base
legal, mostra bem o que é determinante no resultado da disputa.
O espetáculo comandado pelo maestro Deltan Dallagnol levanta questões
importantes. Qual é o impacto dessa atuação ? acusar sem apresentar as provas
? num país no qual ainda há tanta dificuldade de acesso à Justiça para vastas
parcelas da população? Qual é o impacto deste exemplo, por parte de um
servidor público com tanta expressão, no imaginário de uma sociedade que
produz tantos linchamentos?
Essas questões são tudo menos banais. Se a Lava Jato tem que ser
reconhecida pelos seus acertos, que são vários, é imperativo que ela responda
pelos seus abusos, que também são vários, porque eles têm impacto e muito
numa sociedade em que os discursos de ódio têm proliferado. Quando procuradores
e juízes fazem justiçamentos em vez de justiça, o Estado de direito está
ameaçado.
Há vários tipos de estupidez que costumam acometer figuras lançadas de
repente ao centro do palco. Uma delas é a de acreditar na própria lenda. Ou
na potência do seu protagonismo. A vaidade costuma fazer muitas vítimas. E há
ainda aquela ilusão tão sedutora de se achar mais esperto do que todos os
outros no jogo que pretende intervir. Já que a fé tem sido tão invocada por
Deltan Dallagnol, talvez o procurador ?seguidor de Jesus? seja jovem demais
para lembrar que o diabo sabe mais por ser velho do que por ser diabo. E,
assim, olhar mais atentamente para todos os lados antes de se arriscar a
pirotecnias. A começar para o lado de quem o elogia e o estimula ao espetáculo.
É fundamental para o país que a Operação Lava Jato continue. A
prudência sugere desconfiar de unanimidades onde não costuma haver.
Desqualificar a Lava Jato, neste momento, serve para muitos. Lula porque de
fato virou réu e vai precisar se defender formalmente na Justiça. Com o
agravante de que sua mulher, Marisa Letícia, também virou ré, o que é um
golpe bastante duro. Mesmo que Lula não seja condenado na Justiça, porém, ele
já foi condenado por parte da opinião pública. Deste ponto de vista, ainda que
os acontecimentos dos últimos dias tenham mostrado que outras figuras
estratégicas do PT poderão ser alcançadas pelas investigações, são seus
oponentes que possivelmente tenham mais a perder neste momento.
Há muitos com medo de que a Lava Jato siga investigando e os
transforme em réus. Assim, vale tudo, até se indignar contra os abusos da
operação, indignação que não ocorreu em episódios claramente abusivos como o
da ?condução coercitiva? de Lula ou o do vazamento dos diálogos de Lula com a
então presidente Dilma Rousseff.
Quando até mesmo uma figura com a folha corrida do presidente do
Senado, Renan Calheiros (PMDB), critica a Lava Jato dizendo que é ?preciso
acabar com o exibicionismo?, é necessário ouvir a sirene. Este é o momento
escolhido por diferentes personagens para enfraquecer a Lava Jato, com o
objetivo de impedir que a operação prossiga em direção a outras lideranças e
outros partidos e outros governos, no passado e no presente, para muito além
do PT.
Há ainda a hipótese de que a Lava Jato tivesse desde sempre orientada
para uma investigação seletiva. E não interesse nem a seus agentes que ela
prossiga para além do ?grande general?. O espetáculo constrangedor da
denúncia de Lula reforçou essa tese. Cabe aos policiais federais, procuradores
e juízes mostrar que não têm partido nem ideologia na hora de investigar.
Neste sentido, os próximos capítulos são decisivos para que a Lava Jato
mostre a que veio.
O xadrez em torno da Lava Jato é intrincado. É preciso entender se,
neste jogo, Deltan Dallagnol é bispo ou apenas um peão que acredita ser
bispo. O que se pode afirmar é que, para a maioria dos brasileiros, é crucial
que a Lava Jato continue avançando e de fato passe a limpo a relação entre
poder público e empreiteiras, para muito além dos governos de Lula e de Dilma
Rousseff. Essa relação é mais antiga do que a construção literal de Brasília.
E define muito do país. Para isso, é preciso que policiais, procuradores e
juízes sejam policiais, procuradores e juízes ? e não justiceiros nem heróis
de Facebook.
Assim, antes de ?curtir?, é importante resgatar a experiência do
pensamento, esta que nos diferenciou dos outros grandes primatas.
Espantar-se, duvidar, questionar, checar e, principalmente, diferenciar o que
é fato do que é versão antes de sair clicando e gritando. E tudo isso sem
medo de enfrentar as contradições, resistindo mesmo que doa à tentação de
contornar as verdades mais duras. Há muitos líderes ou aspirantes a líder
dançando freneticamente na montanha para atrair seguidores.
Não siga. Pense.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não
ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O
Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma
Duas Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum
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