Ontem
falei sobre as diferentes formas de gravidade das neurofibromatoses. Hoje, vamos compartilhar um caso grave.
Em
2012, uma família do interior de Minas Gerais nos trouxe sua pequena MMJ, com
apenas um ano de idade. Ela vinha apresentando um tipo de convulsão (crises de
ausência) de difícil controle e seu diagnóstico de Neurofibromatose do tipo 1 já
havia sido realizado por um neurologista pediátrico, que encaminhou a menina ao
nosso Centro de Referência.
Quando
a examinei, M mostrava-se apática e com períodos de perda de conjugação do olhar,
alguns movimentos bruscos e involuntários e ligeiramente irritada, resultando
na impressão geral de atraso moderado do desenvolvimento psicomotor por causa
das crises de ausência.
O
conjunto de sinais clínicos que ela apresentava fizeram-me suspeitar de que ela
pudesse ter uma das formas da NF1 causada pela perda completa do gene (chamada
de deleção), que acontece em cerca de 10% das pessoas com NF1. As deleções
completas do gene geralmente produzem mais complicações do que as mutações isoladas
em partes do gene. Naquele momento, ainda não estávamos realizando a pesquisa
da deleção, um estudo do nosso Centro junto com o Laboratório Hermes
Pardini, por isso não fizemos o exame. De qualquer forma, mesmo que fosse confirmada a perda completa do gene,
isto não mudaria a nossa conduta naquele momento.
Mesmo
com a suspeita da deleção, naquela primeira consulta, entre os níveis de
gravidade “mínima, leve, moderada ou grave”, os achados clínicos de M permitiram-me
classificar a gravidade da sua doença como
moderada, pela presença das convulsões. Por isso sugerimos a reavaliação das doses da medicação
junto ao neurologista para tentarmos o controle efetivo das crises epilépticas.
Pedimos
avaliação anual em nosso Centro de Referências para observação do
desenvolvimento psicomotor, se não houvesse qualquer novidade clínica antes
disso. Solicitamos também avaliação fonoaudiológica aos 3 anos e realizamos o
aconselhamento genético dos pais e fornecemos material didático sobre a NF1 na
forma de cartilha e sites.
No
entanto, M retornou em julho de 2015, com histórico de internação hospitalar em
sua cidade natal por problemas ventilatórios: um estreitamento da região da
faringe, que ocasionara aspiração de alimentos e pneumonia. A gravidade da
situação levou à realização de traqueostomia e tratamento para dilatação da
estenose, na esperança de retorno da ventilação às vias normais.
Por
outro lado, as convulsões estavam sob controle com Vigabatrina, o que permitia
à pequena M mais desenvolvimento psicomotor (interação social e postura ereta).
A família também trouxe relatório da pediatra pneumologista, que solicitou nossa
opinião sobre uma imagem tumoral encontrada na tomografia.
Minha
opinião diante das imagens e do exame clínico foi de que havia um neurofibroma
plexiforme na região do pescoço e mediastino, provavelmente causador do
problema do estreitamento da faringe e crescimento anormal dos tecidos na
região (estenose subglótica, mancha do queixo e assimetria discreta do
pescoço).
Lembrei
à família que os neurofibromas plexiformes, apesar de congênitos, ou seja,
estarem presentes desde a vida intrauterina, podem ou não crescer durante a
vida, comportamento este que é impossível de ser previsto num determinado
momento.
Informei
também que o neurofibroma plexiforme em si não se constitui num problema grave,
não havendo necessidade de remoção cirúrgica simplesmente porque ele está
presente, especialmente se considerarmos a localização complexa em que se
encontrava no caso da pequena M, na qual eles praticamente nunca são
completamente removidos.
Orientei
os pais sobre a eventual possibilidade de transformação maligna dos
neurofibromas plexiformes (de 10 a 20% ao longo de toda a vida), alertando-os
que deveríamos ficar atentos a: crescimento rápido (muito acima da velocidade
de crescimento da menina), sinais de dor, especialmente contínua, neuropática
e noturna; mudança de aspecto do tumor para uma consistência mais dura (onde
ele pode ser palpado); perda de função neurológica nas partes do corpo
relacionadas com a inervação que percorre o trajeto do tumor.
Naquele
momento, minha impressão é de que M estava evoluindo razoavelmente bem, e eu
tinha a mesma esperança da pneumologista pediatra de que a traqueostomia pudesse
ser retirada depois de completado o tratamento da estenose e de que o desenvolvimento
psicomotor continuaria progredindo. Neste sentido, recomendei fisioterapia para
desenvolvimento global da marcha e da força muscular.
Infelizmente,
nesta semana recebi um comunicado da família dizendo que há dez dias M havia
sofrido uma súbita obstrução na traqueostomia (durante uma convulsão?), que
causou falta de oxigênio em seu pequeno cérebro, que levou à sua morte cerebral e ela veio a falecer nesta semana.
Enquanto
cuidávamos atentos à porta da frente, o acaso de outra complicação nos surpreendeu pela janela,
roubando-nos a vida de M.
Mesmo
com todo o cuidado e carinho que ela recebeu de seus dedicados pais e dos vários médicos (e médicas) que a atenderam, não há ainda um tratamento que pudesse mudar este final da história.
Seguimos adiante, buscando, para outros, quem sabe?
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